Terra/PCS
Ao menos 1.210 políticos receberam pagamentos que totalizam pelo menos R$ 773 milhões e têm como origem emendas parlamentares pagas entre 2018 e junho de 2025.
O dinheiro foi recebido por meio de empresas em que são sócios. As empresas prestaram serviços para prefeituras e governos estaduais em convênios que receberam recursos de emendas no período.
O fato de uma empresa de político ser contratada pelo poder público não configura, por si, uma irregularidade.
Pode abrir brechas, no entanto, para situações impróprias e de conflitos de interesses.
Entre os beneficiários dessas emendas estão:
prefeitos-empresários que integram consórcios municipais responsáveis pela destinação dos recursos;
suplente de senador cuja empresa recebe verbas indicada pelo senador titular; ex-funcionários de parlamentares;
congressistas cujas empresas são contratadas com recursos de emendas indicadas por colegas.
Atualmente estão disponíveis para análise detalhada no portal Transferegov, do governo federal, dados sobre a aplicação de R$ 31 bilhões dos R$ 173 bilhões pagos nos últimos seis anos em emendas no país.
Ou seja, o valor pago a políticos está subestimado no levantamento do UOL, já que ele considera apenas 18% do total desembolsado.
A pesquisa não inclui também o pagamento a empresas de parentes dos políticos — que, em alguns casos, acabam sendo os principais beneficiários da influência.
"Esses dados são evidência de que as emendas, da forma como são apresentadas e executadas, deixam muita brecha para riscos à administração pública de tráfico de influência ou conflitos de interesses nas contratações", diz Marina Atoji, diretora de programas da ONG Transparência Brasil.
"É uma das razões pelas quais se tenta dificultar ao máximo possível a transparência desses dados", continua a dirigente.
Na último dia 21, o UOL revelou que a distribuição de emendas por critérios políticos ignora indicadores de desenvolvimento e faz com que nem sempre os recursos cheguem a quem mais precisa.
Reportagem publicada no dia seguinte mostrou que a cidade que mais recebeu emendas per capita nos últimos cinco anos decretou calamidade financeira.
O mapa das emendas
Mais da metade das empresas ligadas a políticos identificadas está no ramo da construção civil. São 405 construtoras ou incorporadoras entre as 736 companhias de políticos que receberam verbas de emendas.
Há também um padrão claro em cidades menores. Do total, 55% dos pagamentos a empresas de políticos foram feitos por municípios de até 50 mil moradores — que abrigam só 33% dos habitantes do país. O Nordeste é a região com a maior parte dos pagamentos.
"A importância relativa de um deputado federal para um prefeito de um município pequeno é maior. E, consequentemente, é maior a sua capacidade de influenciar na administração", afirma Cláudio Couto, professor do Departamento de Administração Pública da FGV (Fundação Getulio Vargas).
O professor diz que a forma como se dá o processo legislativo hoje abre o caminho para que a negociação da emenda inclua, desde o início, o direcionamento da obra à empresa ligada a um grupo político local.
"Claro que há empresários que também são políticos, mas é acreditar muito em coincidência (achar que não acontece o direcionamento), vendo esse volume de dinheiro ir de forma significativa para empresas de políticos".
Entre os 1.210 políticos que receberam algum dinheiro de emendas, 194 foram eleitos a algum cargo no período. A maioria é de vereadores e prefeitos, mas há também congressistas, deputados estaduais, secretários de governo e vice-prefeitos.
O político que mais recebeu pagamentos de emendas no período com análise disponível foi o empresário e ex-prefeito de Betim (MG) Vittorio Medioli (sem partido).
Sua empresa Deva Veículos forneceu automóveis para várias prefeituras de Minas Gerais, recebendo pelo menos R$ 69 milhões. Medioli, no entanto, já tinha um histórico empresarial consolidado antes de se tornar prefeito.
A Deva afirmou à reportagem que participa de pregões de acordo com a Lei de Licitações e que, desta forma, todos os processos estão "documentados e disponíveis no Portal da Transparência". A empresa diz ainda ter rígida política de compliance, sem dar detalhes sobre ela, e que cumpre com todas as etapas obrigatórias dos editais.
Proximidade de quem indica
O cruzamento do UOL identificou sete deputados e um senador eleitos cujas empresas receberam pagamentos de emendas no período. Há também dinheiro recebido por políticos próximos aos congressistas.
É o caso de Breno Barbosa Chaves Pinto, suplente de Davi Alcolumbre (União-AP), atual presidente do Senado. Desde 2018, duas empresas em que Breno aparece como sócio receberam ao menos R$ 23 milhões de pagamentos em contratos com dinheiro de emendas. Os valores se referem a obras de pavimentação nos municípios de Santana (AP) e Macapá (AP).
Os valores direcionados à empresa de Breno vieram de emendas da bancada do Amapá e de relator - conhecidas pela opacidade. A reportagem identificou que ao menos R$ 9 milhões dessas emendas de relator foram propostas por Davi Alcolumbre.
Como já relatou o UOL, há um inquérito da Polícia Federal em que Breno é investigado por corrupção, fraude à licitação, falsidade ideológica, lavagem de dinheiro e peculato. O suplente foi alvo de um mandato de busca e apreensão na última terça-feira (22) .
Questionado se via conflito de interesses na indicação de recursos por um aliado político à sua empresa, Chaves Pinto disse que o processo de contratação foi aprovado e acompanhado pela Procuradoria do Estado do Amapá.
Em nota, Alcolumbre argumentou que a gestão dos recursos é atribuição exclusiva de prefeitos e governadores e que não há qualquer ilegalidade em ter enviado as emendas.
Para ele, a associação feita pela reportagem "induz o leitor a erro, ao insinuar desvio de finalidade onde não há sequer competência legal do parlamentar".
Exemplo do Amapá
Outro empresário ligado ao senador Randolfe Rodrigues (PT-AP), líder do governo no Congresso, também recebeu recursos de emendas. Trata-se de Cristiano Furlan (Rede-AP), ex-ajudante parlamentar de Randolfe.
Sua empresa Macplan Construções e Comércio recebeu pelo menos R$ 8 milhões de pagamentos de convênios vinculados a emendas de 2021 a 2024.
Cristiano trabalhou para o senador de março de 2019 a julho de 2020 — quando sua esposa, Lunara Furlan, passou a exercer o cargo antes ocupado pelo empresário na equipe de Randolfe.
Os serviços prestados pela Macplan também foram financiados por emendas de relator. Nenhuma delas, no entanto, teve a assinatura de Randolfe. É possível identificar que houve dinheiro enviado pelos senadores Alcolumbre e Eduardo Braga (MDB-AM) e pelo ex-senador João Capiberibe (PSB-AP).
Cristiano diz não ver conflito de interesses em receber recursos endereçados pelo Congresso, apesar de sua proximidade com o senador. "Foi uma construção de passarela em concreto. E a obra foi entregue, aprovada pela procuradoria do Estado. A emenda não foi do Randolfe, (então) não tem a ver", afirma.
Mais exemplos
O levantamento do UOL identificou também outros exemplos de pagamentos a empresas de congressistas e ex-congressistas:
Ciro Nogueira (PP-PI) - a CN Motos, empresa do senador, recebeu pelo menos R$ 640 mil em emendas desde 2018. A maior parte foi paga em 2018 num projeto de reaparelhamento da Secretaria de Segurança do Piauí, para o qual ele forneceu 31 motocicletas. Na época, Ciro Nogueira já era senador e Wellington Dias (PT) era o governador. O dinheiro para aquisição de motocicletas veio de uma emenda de relator de 2015
Yury do Paredão (MDB-CE) - a empresa do deputado recebeu pelo menos R$ 2 milhões, a maior parte antes de assumir o mandato. Teve emendas do presidente da Câmara Hugo Motta (Republicanos-PB) e dos ex-deputados Valadares Filho (Solidariedade-SE), José Nunes (PSD-BA), Fabio Mitidieri (PSD-SE), além da bancada da Bahia na Câmara. Yury é sócio da Jonas Esticado Gravações, que empresaria o astro do forró Jonas Esticado. As emendas financiaram a contratação do músico em festas regionais
Zé Adriano (PP-AC) - sua empresa MAV Construtora recebeu pelo menos R$ 2,4 milhões desde 2018. Os contratos são anteriores à posse de Zé Adriano na Câmara, em 2025
Jean Wyllys (PT-RJ) - a empresa J.W Serviços Artísticos e de Escritor, de propriedade do ex-deputado, recebeu pelo menos R$ 39 mil em 2022 para fazer assessoria de imprensa do documentário "O Povo Pode?". O contrato para a produção e divulgação do filme foi bancado com emendas parlamentares de Humberto Costa (PT-PE) e Paulão (PT-AL)
O que dizem os políticos
O senador Ciro Nogueira diz que não participa da gestão da empresa, que vence as licitações "exclusivamente por apresentar a melhor proposta".
Yuri do Paredão afirma que usa as emendas de forma responsável e que os recursos mencionados foram aprovados pelo Ministério do Turismo.
Zé Adriano enfatizou à reportagem o fato de que os contratos são anteriores à sua posse, dizendo que inexistem regularidades.
O ex-deputado Jean Wyllys diz que apenas fez o seu trabalho e que é honesto. "Não vivo de luz. Nenhum jornalista ou intelectual vive. Não faço fotossíntese. Isto deveria ser óbvio pra qualquer pessoa inteligente", afirmou.
Leia aqui a íntegra da manifestação dos políticos citados neste texto.
Prefeito é parceiro e também é cliente
O levantamento identificou ainda situações em que prefeitos e vereadores são donos de construtoras que executam obras em outros municípios da região.
É o caso, por exemplo, de Marcos Patriota, prefeito de Jupi (PE) entre 2016 e 2024. Nos últimos cinco anos, a construtora CPM, na qual é sócio, fez obras com dinheiro de emendas em 11 cidades próximas e recebeu pelo menos R$ 22 milhões em pagamentos por esses serviços.
Durante esse período, o ex-prefeito participou da diretoria do Codeam (Consórcio Agreste Meridional), que inclui sete cidades nas quais sua construtora tem obras: Águas Belas, Bom Conselho, Brejão, Caetés, Calçado, Jucati e São Bento do Una.
Entre os objetivos citados pela página oficial do consórcio estão articular a defesa de interesses dos municípios na esfera federal, o que inclui pleitear emendas. Sob Patriota, Jupi também entrou no Coniape (Consórcio dos Municípios do Agreste Pernambucano), que também faz articulação para conseguir emendas de deputados federais aos municípios consorciados.
Em 2025, já fora da prefeitura, Marcos Patriota anunciou que disputaria presidência de uma outra entidade municipal, a Amupe (Associação Municipalista de Pernambuco), que também representa o interesse de municípios junto à administração federal, mas acabou desistindo.
A empresa CPM diz à reportagem que sempre participa de licitações, que Patriota é sócio minoritário e que tem medidas de compliance para mitigar conflitos de interesse.
O levantamento do UOL identificou diversos outros casos em que empresas de prefeitos ou vereadores eleitos são fornecedores de cidades vizinhas. Estão nessa situação políticos de Betim (MG), Lucrécia (RN), Ituberá (BA), Mirante (BA), Sobradinho (RS), entre outros municípios.
"A gente tem um desafio no Brasil com as licitações em cidades menores. Os tribunais de conta não conseguem fiscalizar e as Câmaras de Vereadores, se estiverem com o prefeito, fazem menos controle. Existem, portanto, oportunidades de favorecimento", diz Bruno Bondaravoski, criador da plataforma Central das Emendas, que auxilia no controle do dinheiro repassado pelos congressistas.
Para Bondarosvsky, é preciso melhorar os mecanismos de transparência e uma maior presença da sociedade civil na fiscalização de casos como as empresas de políticos identificadas pelo levantamento do UOL.
Metodologia
O UOL reuniu os CNPJs de 53 mil fornecedores em contratos vinculados a R$ 31 bilhões pagos por meio de emendas parlamentares entre 2018 e o início de 2025.
Os dados foram obtidos nos módulos de emendas discricionárias e Pix da plataforma Transferegov do governo federal. Também foram usados em conjunto informações do Siga Brasil e do Portal da Transparência.
Depois de identificar os fornecedores desses contratos, foram identificados os sócios dessas empresas e quais deles haviam concorrido nas últimas 4 eleições ou estavam no Cadastro de Pessoas Expostas Politicamente (PEP) do governo.
Também foram analisados os pagamentos de emendas a 28 mil CPFs e identificados quais, dentre as pessoas com esses documentos, haviam concorrido nas últimas eleições.
*Colaborou Marina Giannini, do UOL