Terra/PCS
ImprimirA professora de idiomas Letícia Meirelles, de 27 anos, mora sozinha desde que saiu da casa de seus pais, em 2020. Ela já trocou de imóvel algumas vezes, mas não abre mão de morar em condomínio. Por mais que trabalhe de casa, como mulher, a segurança é o maior motivador. A ideia de ter um porteiro na hora de receber um delivery, agentes de segurança fazendo rondas constantes e um circuito de câmera monitorado, trazem a sensação de conforto para trabalhar e viver.
Esta reportagem faz parte da série Vizinhança em Guerra, que aborda a crescente violência em condomínios na cidade de São Paulo a partir das histórias de moradores vítimas de agressões físicas, verbais e até emocionais.
A jovem buscou um apartamento para dar sossego aos pais durante suas aulas de idiomas online. Como ela tem alunos que moram no Brasil e no exterior, até hoje tem que lidar com fuso horário, o que causa incômodo por fazer barulho altas horas da noite.
Desde 2022, ela reside em um prédio no Tucuruvi, na Zona Norte de São Paulo. O que Letícia nunca imaginou quando visitou o imóvel é que passaria sufoco por causa de briga envolvendo candidatos políticos à Presidência.
Tudo começou no início de 2022. Logo após a mudança, ela perguntou sobre o grupo de WhatsApp do condomínio para ficar dentro dos informes da sindicância. Além disso, a ferramenta é um bom recurso para divulgar seu serviço aos outros moradores. Rapidamente, Letícia notou animosidade na troca de mensagens entre condôminos. Apesar do espanto, nunca interferiu por diferentes motivos.
Entretanto, em outubro, durante a disputa eleitoral entre Jair Messias Bolsonaro (PL) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ela viu os ânimos ficarem mais exaltados por lá, contemplando figurinhas ofensivas dos candidatos, palavreados, discursos de ódio e, mais grave, ameaças de morte.
“Começou com coisas simples, com figurinhas. Eu me lembro perfeitamente que a confusão começou com as figurinhas do Lula no grupo. Ele tinha acabado de ir para o segundo turno, mas o assunto no grupo era outro, algo aleatório, até que alguém jogou uma figurinha do Lula no grupo celebrando. Nisso, o proprietário de um dos apartamentos dentro do condomínio acabou se revoltando”, relembrou. “Cansada da situação, eu e outras pessoas começamos a colocar panos quentes, afirmando que ali não era lugar para tal discussão. Mas ele já estava muito exaltado.”
A exaltação tomou conta de petistas e bolsonaristas. No meio de todo o caos, o choque foi completo quando um apoiador do ex-presidente ameaçou atirar contra vizinhos que eram eleitores de Lula. “Ele começou a desabafar dentro do grupo do condomínio, falando que não aguentava mais isso e ele soltou a seguinte frase: ‘Que se continuasse assim, ele mesmo, sairia da casa dele e ia mostrar para todo mundo quem de verdade são os eleitores do Bolsonaro’. Ele também disse para as pessoas temerem-no porque ele tinha arma e tudo mais. Me chocou bastante, eu lembro que tirou a minha paz de espírito. Ao ver as mensagens, eu não sabia quem era ele, o que me deixou em estado de alerta sempre, com a sensação de que algo estava para acontecer.”
Letícia e outros moradores do condomínio até tentaram acionar a sindicância no grupo do WhatsApp, mas, segundo ela, a única atitude que tomaram foi vetar todos de enviar mensagens, deixando apenas o síndico e o subsíndico habilitados. Apesar da tentativa de apaziguar os ânimos, a professora relata que não foi muito eficaz, pois assim que o grupo foi aberto para todos novamente, o proprietário voltou a ameaçar alvejar as pessoas.
A professora, que já era uma pessoa que passava bastante tempo dentro de casa, assume que se isolou mais, deixou de levar amigos e familiares ao condomínio temendo pela integridade física. Além disso, hoje em dia, passeia bem menos com seus dois cachorros. “Isso acabou me despertando uma crise de ansiedade muito grande. Em momento de eleição a gente já fica assim naturalmente dependendo do nosso posicionamento, mas a gente fica assim na rua, geralmente em casa é um local que a gente se sente seguro. Eu fiquei muito tempo preocupada e até pensei em me mudar do prédio após esse evento”, confessa.
Após anos do caso, Letícia ainda tenta lidar com a insegurança no condomínio em terapia. “Por um tempo eu tive medo de sair, até porque não sabia o rosto dele”, explicou, que se arrepende de não ter formalizado ocorrência contra o proprietário.
Injúria: delito recordista nos últimos 5 anos
De acordo com levantamento realizado pela reportagem do Terra, com base em dados da Secretaria Municipal de Segurança Pública de São Paulo, de janeiro a julho de 2020, foram registrados 496 casos de injúria, que podem ser relacionados com brigas, discussões e ameaças. Em 2021, houve um aumento de 11% nos registros de injúria (549 casos). Mas a situação se agravou a partir de 2022, quando foram lavradas 916 ocorrências no mesmo período.
Em 2023, quando a parcela da população estava vacinada e a pandemia de covid-19 controlada, 686 casos de injúria foram registrados nos sete primeiros meses, o que representou uma queda na troca de xingamentos entre vizinhos. O declive continuou em 2024, que teve 605 registros. Os números representam uma clara queda de 25% e 12% com relação aos respectivos anos anteriores.
Em uma nova crescente, o início de 2025 já atingiu o número de 711 casos, o que representa aumento de 43,3% na violência verbal em relação aos anos anteriores. Seguindo essa projeção, a expectativa é que o ano termine batendo recorde.
Violência psicológica em condomínios 'é uma doença invisível e silenciosa', afirma especialista
Paulo Porto, PhD em Psicologia Clínica e professor da PUC-PR, caracterizou os impactos causados por conflitos em condomínios à saúde mental como ‘doença invisível e silenciosa’. Para ele, conviver em constante estresse pode acarretar em inúmeras consequências. A falta de ‘paz de espírito’, vamos chamar assim, pode até levar à morte.
"A consequência maior é, independente do sofrimento psicológico, a gravidade maior é sempre a morte. Às vezes, a pessoa está em tanto sofrimento que vira uma questão de suicídio: ‘Eu não aguento mais, isso é péssimo, isso é minha vida. Eu estou num espiral, que eu saio de casa é ruim, eu chego em casa é pior ainda’. Então, ele desiste de tudo comete o suicídio. Eu posso ter a situação da pessoa ter uma depressão tão grave que acaba ficando acamada, acaba não se alimentando, acaba ficando fraca e ela acaba literalmente desistindo da vida e ela vai acabar falecendo, muitas vezes, por uma infecção generalizada ou alguma outra coisa, mas é consequência do desistir de viver."
Antes do pior cenário possível, Paulo Porto afirma que o corpo humano tem mecanismos psicológicos que, de forma espontânea e sutil, começam a sinalizar que estamos em situação de estresse tóxico. O desconforto dentro da própria casa, o medo de sair e encontrar com alguém podem ser sinais pertinentes, mas há também sintomas físicos.
"A sintomatologia do medo, muitas vezes, é similar à da ansiedade: eu posso ter queda de cabelo, manchas na pele [...] Tem pessoas que vão somatizar mais por uma questão do sistema digestivo, então começa a ter gastrite, excesso de gases, às vezes até diarréias mais crônicas. Tem pessoas que afetam mais o sistema imunológico, então fica doente a qualquer momento. Tem pessoas que vão ter ali dor de cabeça, enxaquecas [...] ou começam a ter uma questão do sistema circulatório, então começa a ter ali às vezes até arritmia [...] ou respiratórias, a pessoa começa a ficar mais ofegante."
Consultada, Cintia Castro, psicanalista que atuou por anos como mediadora em conflitos de condomínios, também acredita que a constante convivência com estresse psíquico, seja ele causado por alguém ou por alguma situação como, pode causar pode danos severos à saúde mental, levando qualquer pessoa a quadros severos, como a:
Agorafobia (A vítima pode evitar áreas comuns, prejudicando sua qualidade de vida)
Depressão (O estresse constante afeta o equilíbrio emocional)
Crise de pânico (Vivendo sob ameaça, a vítima deixa de ter paz dentro de casa)
Crise de Ansiedade (A questão se torna um gatilho para a pessoa)
TEPT (Transtorno de Estresse Pós-Traumático)
Problemas físicos (Insônia, dores de cabeça, pressão alta e até tricotomia) Para manter a sanidade, segundo ela, é preciso estar atento a sintomas e saber quando buscar ajuda. "Se começa a afetar o seu cotidiano, quando você começa a se isolar, evitar frequentar as áreas comuns, você evita vizinhos, começa a sair de grupos de WhatsApp, é um sinal de alerta. Então, a primeira coisa a se fazer é pedir ajuda para quem mora com você. Se não tiver ninguém, procure ajuda profissional. Porque você vai começar a ter um sofrimento interno que você não vai conseguir exteriorizar”.
O papel do síndico com violências em condomínios
Para além de se blindar psicológicamente, no âmbito condominial, também há maneiras de se proteger. Caso o morador esteja sofrendo ameaças, a orientação de Christiane Faturi, vice-presidente da Associação Nacional dos Síndicos e Gestores Condominiais (ANSINDICOS) é tentar reunir evidências: "Denuncie ao síndico e ao conselho, registre ocorrências e exija medidas. Documente as agressões, guarde prints, áudios, vídeos ou testemunhas. Busque mediação, um mediador externo pode ajudar a resolver conflitos. Por fim, se necessário, procure um advogado para medidas legais".
Em casos que a polícia e o administrativo não derem resultado, Christiane Faturi aconselha o síndico e o morador lesado a procurarem informações sobre o artigo 1337 do Código Civil, que possibilita a administração expulsar alguém do condomínio por ser nocivo ao convívio social.
“Nesse caso do WhatsApp, por exemplo, não basta somente silenciar o WhatsApp, visto que isso não resolve o problema, o síndico deveria ter feito um boletim de ocorrência contra o proprietário que ameaçou alvejar moradores/eleitores de outro partido político. Essa é uma situação bastante grave que deve ser coibida de forma eficaz pelo síndico, acionando a polícia para resguardar a vida dos condôminos. E na esfera cível, existe a figura do condômino antissocial”, disse, citando o artigo 1337.
Para Renato Daniel Tichauer, presidente da Associação de Síndicos de Condomínios Comerciais e Residenciais do Estado de São Paulo (Assosíndicos) é incontestável que a pressão psicológica, assim como outros conflitos, estão aumentando em condomínios.
Para ele, em casos como o de Letícia, que a pessoa se enxerga sem esperança, pode-se também sugerir à sindicância outras medidas, como palestras informativas. “É preciso conscientizar os novos condôminos, que nem sempre tem a cultura do que é viver e conviver em condomínio. [Explicar] que deve-se preservar o bom senso e o direito de vizinhança. Afinal, direitos e deveres devem ser cumpridos por todos",* encerrou.