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Por causa da chuva, o campo de Xerém amanheceu com bolsões d’água. Com rodos em punho, funcionários do Fluminense tentaram minimizar os estragos. Afinal, era dia da estreia do tricolor no Carioca Sub-20, contra a Portuguesa. Não deu muito certo. A drenagem, como todos os processos, precisa de tempo. À beira do campo, Leo Percovich sabe disso. O jogo (1 a 1) marcou seu recomeço após o acidente de 17 de dezembro, no qual suas duas filhas morreram. A dor ainda não escoou.
Não só física, como emocional. Além das sete costelas fraturadas, o pulmão perfurado e a clavícula deslocada, o técnico chora constantemente. Foi assim em sua reapresentação, na última terça, diante dos jogadores. É o que ocorre quando vê meninas da idade das filhas nas ruas. E na solidão de casa.
— Na medida em que vou me reestruturando e reorganizando meu dia a dia, vou voltar a ser um treinador melhor e estarei em harmonia com meu trabalho — conta Percovich: — Chorar em casa me alivia. Dá uma visão mais profunda no dia seguinte, quando volto aqui com outra energia. Acho que é algo recarregável. A mesma energia que você perde, reencontra na sua casa, no seu pensamento e no trabalho.
Como precisarão de cadeira de rodas nos próximos meses, o filho Gianpietro e a mulher Juliana estão em Belo Horizonte. O uruguaio vive sozinho no Rio, no mesmo apartamento de antes. Todas as noites, dorme na cama que era das filhas. Apesar da solidão, passa por um processo de assimilar o que ocorreu e de aprender a olhar para trás sem angústia.
— A ida das minhas filhas terá sido em vão se eu continuar sofrendo. E meu filho merece ser feliz. Para isso, tem que ver os pais felizes e fortes. Apesar de me sentir vazio por dentro, é isso que procuro fazer: me encher outra vez daquela alegria e amor e passar tudo para eles. Estou dando tudo o que tenho, mas sentindo que ainda é pouco. Preciso aprofundar mais — afirma.
Para chegar a essa conclusão, Percovich já percorreu um caminho longo. Ele passou por uma terapia de regressão para tentar lembrar do momento fatídico, um vazio em sua mente. Não funcionou. Também voltou ao local do acidente, uma ponte na rodovia BR-040, em Santos Dumont, Zona da Mata Mineira. Lá, agradeceu aos moradores que o socorreram e viu que não há mureta de proteção no ponto onde o carro caiu.
— Triste saber que o governo, talvez por economia, não se preocupa com a vida de pessoas tão caras — disse.
No discurso do técnico, é possível perceber o sentimento de culpa. Percovich conta que a mulher e os filhos tinham passagens aéreas compradas para Minas, onde passariam o Natal com os pais de Juliana. Mas ele fez questão de levá-los de carro. O conforto só foi encontrado no kardecismo.
— Começamos a entender que existe uma conexão, um porquê e um quando. A gente se refugia nisso porque dá paz. Não acaba com a dor. Mas aprendemos a não viver com sofrimento, que é diferente. A dor vai continuar pelo resto da vida. Mas você a coloca de lado, ajeita. Já o sofrimento te mata — resumiu.
No kardecismo, Percovich achou conforto. Em Abel Braga, compreensão. O treinador do profissional, que perdera um filho num acidente doméstico, em julho, telefonou para o técnico do sub-20. Ao ouvir a voz do colega de profissão, o uruguaio caiu em lágrimas.
— Perguntei como fazia para continuar. Ele falou: “Pega sua esposa, seus amigos e sua família e se dedica ao trabalho para você se manter forte. Porque a dor não vai passar — relatou o uruguaio. — Eu entendo a dimensão do que ele passou. E ele sabe onde eu estava metido.
Apoio não falta. Neste sábado, após o gol tricolor, marcado por Lucas, os jogadores foram abraçá-lo. Sua presença na área técnica se deve à Juliana, que o aconselhou a continuar quando ele pensava em desistir do trabalho. Mas também às filhas. A principal lição de sua jornada é que a dor pode ser convertida em motivação:
— Quando aconteceu tudo, que eu estava lá e não tinha mais minhas filhas, pensei: “Eu era tão feliz morando na Inglaterra, percorrendo o mundo inteiro, o que vim fazer aqui? Mas aí vão passando os dias e você começa a ter uma dimensão maior. Começa a entender que, se voltar agora, tudo terá sido em vão. Não posso recuar agora. Tenho uma carta das minhas filhas na qual dizem que gostariam que eu fosse o melhor treinador. Antes de vir ao Brasil, as fiz entender que o “Papi” estava começando uma carreira nova. Vou continuar para honrar o que prometi. Estou correndo atrás do meu sonho e tenho que entender que nada disso foi em vão.