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ImprimirAos sete anos, Clara** tem uma dívida de R$ 38.278,80. A origem são empréstimos contratados em seu nome entre 2022 e 2023, acertados por uma tia materna que detinha sua guarda à época. Como Clara não sabe escrever, uma selfie sua serviu como assinatura.
Por causa da transação, o valor do BPC (Benefício de Prestação Continuada) que a menina recebe por ter síndrome de down —R$ 1.518 por mês— sofre hoje descontos de R$ 540 para o pagamento da dívida.
O caso de Clara não é único. Existem hoje 763 mil empréstimos consignados ativos para menores de idade, com valor médio de R$ 16 mil, diz Gilberto Waller Júnior, presidente do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social).
Ele assumiu o cargo em maio deste ano no lugar de Alessandro Stefanutto, demitido após operação da Polícia Federal revelar um esquema de fraudes bilionárias em benefícios — indicado pelo governo Lula (PT), Stefanutto foi preso na semana passada.
O INSS classifica como "ativos" os empréstimos que estão sendo pagos por meio de descontos nos benefícios destinados a crianças e adolescentes. Ao todo, foram emprestados cerca de R$ 12 bilhões.
A situação de Clara se tornou possível por causa da Instrução Normativa 136, de agosto de 2022, que permitiu que contratos assim fossem fechados sem a necessidade de autorização judicial, como acontecia anteriormente.
"Qualquer pessoa foi autorizada a fazer o empréstimo em nome daquela que recebe o benefício, desde que fosse sua representante legal", explica Waller Junior.
"Há casos até de bebês com meses de idade já endividados", diz o advogado João do Vale, integrante da Anced (Associação Brasileira de Defesa da Criança e do Adolescente).
Pesquisador em litígios coletivos da USP, Vale teve acesso a um levantamento do INSS que revela 15 casos envolvendo menores de um ano apenas em 2022. Continua após a publicidade
Em um deles, a criança nasceu em maio e, em dezembro, já tinha uma dívida de R$ 15.593 em seu nome a ser paga em 84 parcelas. Em outro, um bebê de três meses "contraiu" um empréstimo via cartão de crédito de R$ 1.650.
Em agosto deste ano, por determinação judicial, o INSS cancelou a regra. Mas o estrago já estava feito.
Segundo o mesmo levantamento, mais de 395 mil acordos foram averbados em 2022 com instituições financeiras via BPC ou pensão por morte. A maior concentração se deu na faixa etária dos 11 aos 13 anos (136 mil acordos).
Segundo o atual presidente do INSS, a instituição está revisando todos os acordos com bancos, reduziu de 74 para 59 a lista de instituições parceiras por conta de irregularidades e, desde maio (quando assumiu), não permite que empréstimos consignados sejam feitos sem que a biometria do próprio beneficiário seja cadastrada e faz um pente-fino em relação aos descontos em folha.
"Todos os controles estão sendo feitos para poder melhorar a credibilidade desse tipo de desconto", afirma Gilberto Waller Júnior.
Ações pedem indenização na Justiça
No começo de outubro, entidades da sociedade civil deram início a uma ação civil pública para tentar anular esses empréstimos e obter indenizações para todos os beneficiários prejudicados.
"Quando vi o caso da Clara, fiquei assustado", afirma Márlon Reis, também da Anced, entidade autora da ação juntamente com a Abradeb (Associação Brasileira de Defesa dos Clientes e Consumidores de Operações Financeiras e Bancárias).
"A normativa colocou crianças e adolescentes em um universo perigosíssimo", disse.
Qualquer contrato em que uma criança seja uma das partes envolvidas é ilegal. Camila Pellegrino, especialista em direito previdenciário
A advogada lembra que o Código Civil define menores de 18 anos como "incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil" e como nulos os negócios celebrados por incapazes.
"Os benefícios pagos pelo INSS só podem ser usados para alimentação, moradia e outros gastos de subsistência —não como garantia num empréstimo", afirma a advogada.
Os números mostram o tamanho do problema. Entre 2021 e 2024, a quantidade de empréstimos consignados ativos em nome de crianças e adolescentes beneficiárias do INSS aumentou mais de 30 vezes.
"O ovo da serpente"
"O ovo da serpente foi a medida provisória que liberou empréstimo consignado para quem recebe BPC", afirma Valdir Simão, sócio do Warde Advogados e presidente do INSS entre 2005 e 2007 e 2008 e 2010.
Aprovada em março de 2022, a medida provisória 1106 permitiu que quem recebesse BPC e outros benefícios autorizasse descontos nos valores pagos pelo INSS para quitação de financiamentos e outros produtos financeiros.
Essa MP virou lei em agosto daquele ano, quando o INSS liberou beneficiários para comprometer até 45% de seus vencimentos com contratos desse tipo.
"Embora o objetivo fosse ampliar o acesso ao crédito para famílias em vulnerabilidade, na prática, isso abriu espaço para fraudes, abusos e endividamento de crianças", diz o advogado Guilherme Cavini.
No caso de Clara, foram feitos dois empréstimos. Um de R$ 35.632,80, em dezembro de 2022, e outro de R$ 2.646 em fevereiro do ano seguinte. Há previsão de descontos no benefício da menina até os 13 anos.
Em março de 2023, a tia que cuidava dela e dos outros três irmãos no interior do Paraná conseguiu a transferência da guarda de Clara para Ana Paula*, tia paterna da criança que mora em Mato Grosso —mas não a avisou sobre os empréstimos.
Quando a nova tutora descobriu, decidiu processar o Banco Pan, que emprestou o dinheiro.
"Se o banco não tivesse liberado, nada disso estaria acontecendo", afirma Ana Paula, atual responsável legal por Clara.
Procurado, o Banco Pan informou que "não comenta processos em andamento na Justiça".
O dinheiro foi liberado como empréstimo consignado. Nessa categoria, o beneficiário recebe um valor e paga a dívida por meio de descontos no benefício, com juros de até 1,85% ao mês (ou 24,6% ao ano).
A taxa é baixa, segundo Simão, já que os descontos em folha garantem o pagamento, sem risco de calote.
Já o risco de descumprimento dos direitos das crianças e adolescentes só aumentou com as regras criadas em 2022.
Aos 11 anos, Maria* teve de entrar na Justiça para tentar declarar nulo um contrato de R$ 13.023 feito em seu nome pela mãe, dependente química, que a abandonou.
A criança foi representada na Justiça pela instituição que a acolheu depois de comprovadas as práticas de maus-tratos contra a garota.
No curso do processo, tanto o Conselho Tutelar quanto o Ministério Público comprovaram que o dinheiro emprestado nunca foi usado em benefício da menor, que foi encontrada pelas autoridades sozinha nas ruas de São Carlos, no interior paulista.
Maria é autista grau 3 de suporte, considerado o mais severo. Na decisão, o desembargador Salles Oliveira, do Tribunal de Justiça de São Paulo, reiterou que a contratação do empréstimo consignado exorbitou o simples exercício de administração patrimonial da menor.
"O valor emprestado não foi revertido em proveito da própria titular, menor e pessoa com deficiência que foi encontrada poucos meses depois pela rede de proteção, em situação de completo abandono", escreveu.
O acórdão anula a dívida e ordena a Facta Financeira, responsável pela transação, a pagar R$ 10 mil em danos morais. A reportagem não conseguiu contato com a financeira.
Cartão de crédito com desconto na folha
Além do empréstimo consignado, outros dois produtos foram vendidos a menores desde de 2022.
A RMC (reserva de margem consignável) e a RCC (reserva do cartão consignado) funcionam como cartões de crédito e têm juros de até 2,46% ao mês (ou 33,86% ao ano) —apesar de também serem pagas com desconto em folha.
A Justiça já tem se manifestado de forma contrária à entrega desses cartões.
Em janeiro de deste ano, uma decisão da 1ª Vara Cível de Ibirité (MG) declarou nulo o contrato de cartão de crédito consignado que incidia sobre o BPC de uma criança de quatro anos. E ainda condenou a instituição financeira a indenizar o menino em R$ 10 mil por danos morais.
A ação foi apresentada pela mãe do beneficiário, que contratou um empréstimo para suprir necessidades básicas do filho, mas não um cartão de crédito.
Durante o processo, o banco sustentou que a autorização tinha se dado mediante o envio de selfies, não aceitas pela Justiça.
Segundo a juíza Patrícia Froes Dayrell, "mesmo que o consumidor atue com culpa ao procurar o banco para realizar o empréstimo em nome de terceiro incapaz, tal fato não exime o fornecedor, que também concorre para a concretização da contratação, de participar da mitigação do prejuízo, prevalecendo a boa-fé objetiva e evitando o agravamento do dano".
Entre especialistas consultados, há quem classifique as regras de RMC e RCC como praticamente impagáveis. Em 2024, só o Banco BMG tinha 101.434 empréstimos ativos do tipo RMC concedidos a crianças em todos os estados do Brasil —23.845 deles em São Paulo.
Com base na Instrução Normativa 136 e nesses três tipos de produtos financeiros, o valor emprestado por instituições financeiras a crianças saltou de R$ 116 milhões em 2021 para R$ 4,1 bilhões em 2024.
As ofertas de bancos
"O banco me ofereceu um cartão RMC dizendo que eu poderia sacar R$ 1.500", diz Rosana Pio. Ela vive no litoral paulista e é mãe de Miguel*, que também é autista, tem dez anos e recebe BPC de um salário mínimo (R$ 1.518, em 2025).
"Esse cartão nunca chegou até a minha casa", afirma Rosana. Já a dívida de R$ 3.780, a ser paga em 84 parcelas de R$ 45 descontadas do benefício de seu filho, sim.
O produto foi ofertado por telefone, o contrato foi fechado por app e os descontos acontecem desde abril do ano passado.
Em março de 2025, Rosana acionou a instituição, a Capital Consig, já que o contrato não foi autorizado pela Justiça. O caso segue aberto.
Fundada em 2014, a Capital Consig é uma sociedade de crédito que foi alvo em outubro de uma ação civil pública em Mato Grosso justamente por problemas relacionados à concessão de empréstimos consignados a servidores estaduais.
Procurada, a instituição informou que "seguiu estritamente toda a legislação vigente no momento em que o contrato foi firmado e segue todas as regras do mercado em sua atividade". "Todos os fatos serão esclarecidos no Judiciário", afirmou em nota.
Em março de 2025, o MPF (Ministério Público Federal) de São Paulo propôs uma ação civil pública para suspender a Instrução Normativa 136. A ação chegou ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região que, em junho, suspendeu os efeitos da norma.
Devido ao processo, o INSS divulgou, em agosto, a Instrução Normativa 190, impedindo que representantes legais contratem empréstimos consignados e outros produtos em nome de beneficiários.
A diferença desse processo para o proposto por Anced e Abradeb são os alvos. No caso do MPF, o alvo é o próprio INSS. No caso das entidades, além do órgão, 47 instituições financeiras emprestaram dinheiro a menores.
Ex-presidente do INSS, Valdir Simão acredita que a instituição dificilmente teria capacidade operacional para acompanhar os mais de 450 mil empréstimos consignados.
"A melhor decisão foi essa que acabou sendo tomada, de proibir essa consignação", diz.
Para o advogado, a possibilidade de responsabilização dos bancos é limitada, já que eles atuaram dentro das regras previstas pelo INSS.
"É um negócio que acabou virando um grande nicho e, lamentavelmente, em detrimento da criança que é beneficiária", resume.
Especialistas apontam algumas medidas para que o problema não se repita: mudar a lei que autoriza o uso de benefícios como garantia de empréstimos, exigir dos bancos maior transparência na oferta desses produtos e melhorar continuamente os mecanismos de controle do INSS e das instituições financeiras são algumas delas.
Além disso, é essencial que beneficiários e suas famílias tenham atenção em relação aos financiamentos.
Já advogada Camila defende que a situação seja objeto de investigação. "Precisamos que Polícia Federal e Ministério Público investiguem a fundo não só INSS, mas principalmente os empréstimos", diz.

