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ImprimirImagine precisar consertar seu carro e descobrir que a oficina de confiança do seu bairro não pode mais mexer nele, pois não tem acesso ao sistema do veículo. Isso já está acontecendo. À medida que os carros se tornam mais conectados e automatizados, as informações técnicas que garantem o diagnóstico e o reparo desses veículos estão ficando restritas a códigos de software controlados exclusivamente pelas montadoras.
Essa realidade tem colocado oficinas independentes diante de um desafio crescente. E o que está em jogo não é apenas a sobrevivência desses pequenos negócios, mas também o direito do consumidor de escolher onde quer fazer o reparo.
Novo obstáculo
"O mecânico pluga um scanner no carro e não consegue acessar a falha, porque a montadora trava a informação. Aí não tem diagnóstico, não tem reparo. E o cliente sai da oficina sem solução", afirma Antonio Fiola, presidente do Sindirepa Brasil e do Sindirepa-SP. Em entrevista à coluna, ele explicou como a eletrônica embarcada tem tornado os reparos mais complexos e caros.
De acordo com Fiola, o mecânico brasileiro sempre deu um jeito. Mas agora, com os sistemas avançados de assistência à direção (ADAS), a conectividade e os softwares proprietários, "se virar nos 30" não tem sido suficiente.
Sem acesso autorizado a esses dados, muitos profissionais recorrem a meios informais, como grupos de troca de informações sobre defeitos ou até ao pagamento de diagnósticos em concessionárias, onde os custos podem variar de R$ 600 a R$ 1.500 apenas para identificar o problema.
Right to Repair
Inspirado por uma causa que começou nos Estados Unidos e hoje já se espalha por mais de 20 países, o movimento Right to Repair (Direito de Reparar) defende que quem compra um carro deveria ter o direito de consertá-lo onde quiser. Para isso, as montadoras precisariam liberar os dados técnicos necessários para o diagnóstico e reparo por qualquer oficina, e não apenas pelas autorizadas.
O movimento nasceu com os eletrônicos, especialmente após casos em que donos de iPhones não podiam trocar a bateria fora da Apple sem perder a funcionalidade do aparelho. Hoje, se estende a eletrodomésticos, tratores, carros e até dispositivos médicos.
No Brasil, entidades do setor de reparação, como o Sindirepa, vêm se articulando, desde 2023, para propor um Projeto de Lei Federal que regulamente o direito de acesso a essas informações.
Em audiências públicas no Congresso, representantes da indústria, como a Anfavea, entidade que reúne os fabricantes, reconheceram que o avanço tecnológico impõe desafios aos reparadores independentes, mas levantaram outras questões que precisam ser avaliadas nessa encruzilhada, defendendo a necessidade de "regulação com equilíbrio", citando preocupações com segurança e proteção de dados.
Segundo eles, a liberação total das informações poderia acarretar alguns problemas, como a possibilidade de alterações em códigos, que poderiam aumentar a poluição emitida pelo carro, por exemplo.
Já a eliminação equivocada de alguns deles afetaria o funcionamento de airbags, enquanto a introdução de outros permitiria o uso de chaves falsas. Atualmente, a Anfavea afirma seguir aberta ao diálogo.
Nos Estados Unidos, por outro lado, o debate tem sido mais direto: algumas montadoras chegaram a contestar na Justiça leis estaduais que obrigam o compartilhamento de dados técnicos com oficinas. O que se observa, portanto, é que a indústria automotiva ainda adota uma postura cautelosa sobre o tema, sem assumir abertamente apoio ou oposição à regulamentação do direito de reparar.
No Brasil, o acesso ainda é limitado. E, quando existe, pode envolver custos extras por tempo de uso ou por veículo. "Algumas montadoras até vendem o acesso por 24 horas, o que torna viável para a oficina. Mas outras ainda cobram caro ou impõem barreiras técnicas. É preciso comprar um software específico para operar", explica Fiola.
O que está em risco
Segundo dados do setor, mais de 80% dos reparos de veículos no Brasil são feitos fora das concessionárias. Para o Sindirepa, se as oficinas independentes forem excluídas desse processo, o consumidor poderá pagar mais caro, enfrentar filas maiores e perder o direito de escolha.
A concentração das informações técnicas também pode ter impacto no próprio mercado automotivo. "Quando um carro ganha fama de difícil de manter, as pessoas pensam duas vezes antes de comprá-lo. Isso prejudica até a própria montadora", avalia Fiola.
Por outro lado, desde a indústria de smartphones até carros, fabricantes afirmam temer pela segurança e privacidade dos usuários, caso todas as informações fiquem públicas.